Talvez muitos de vocês já tenham ouvido falar nisso – muitas faculdades de medicina têm uma coisa chamada “Internato rural”, que é um estágio em que você vai ter a verdadeira experiência de médico do interior. Na minha faculdade, íamos de dupla para uma cidadezinha qualquer de Minas Gerais. Antes rolava o tão esperado sorteio – algumas cidades eram obviamente mais desejadas que as outras. Pois após passarmos horas planejando nossa lista de forma quase algorítmica, claro que eu e Cibz demos um azar danado e fomos a penúltima dupla a ser sorteada. Acabamos indo para uma cidadezinha do vale do Jequitinhonha, cujo acesso com 100km de estrada de terra me fazia optar pela jornada de 9 horas num ônibus que nem banheiro tinha. Quando chegava em casa tomava banho e a água saía até marrom de tanta terra no cabelo, rs.
Com isso acabei ficando várias semanas sem ir para BH. A internet por lá variava entre muito lenta a não-funcionante (justamente no final de semana ficava sem funcionar). A televisão muitas vezes ficava sem sinal. Como alternávamos as visitas em BH, passei vários finais de semana por lá sozinha na casinha, quase sem comunicação com o mundo lá fora. O que me restava fazer era pegar uma cadeira, colocar no jardim e ficar observando os calangos de dia e as estrelas à noite. O que mantinha minha sanidade eram os livros – eu infelizmente era sedentária na época. Imaginem o tanto de oportunidade de fazer exercícios, yoga etc que não perdi? 🙂 Enfim, lembro que nesses 3 meses eu li 18 livros (sei disso porque há 12 anos tenho um diário de leitura, lembram deste post?).
E esses meus óculos roxinhos que usava para aparentar mais velha? kkkkk
Um dos livros que me marcou nessa época foi o Memória de minhas Putas Tristes do Gabriel Garcia Marquez. Particularmente por uma frase que o eu-lírico cita sem nem saber bem ao certo quem disse, talvez Júlio César: “‘é impossível não acabar sendo do jeito que os outros acreditam que você é”.
Lembro que isso me fez pensar muito, em uma época importante da minha vida. Sabe, em termos de relações humanas, essa verdade é quase um acidente. Acho que quase ninguém faz por mal. Eu sei que eu não faço por mal. E justamente são as pessoas que mais “te conhecem” e que te são mais importantes que exercem esse maior poder sobre você. Mas a verdade é que estamos constantemente arrastando os outros devido a nossos pré-julgamentos, assim como somos também arrastados a toda hora. Tal como aqueles ralos de piscina que puxavam o pessoal pelos cabelos.
Eu sempre fui uma pessoa introspectiva e na minha. Em algumas situações bem tímida, em outras bem o contrário – afinal, somos personagens redondos e tudo depende de quando, como, em que contexto e com quem! Acho que hoje em dia encontrei um estado de equilíbrio em que me aceito muito bem (mas sempre aberta a melhoras) e estou em paz comigo mesma, com minha personalidade. Não tem frase que minha querida psicóloga (fiz 5 anos de terapia) me disse mais do que “está bem assim”. E essa é uma frase que carrego para sempre, para não brigar muito comigo mesma. Eu já tive o seguinte diálogo:
– Ana: Eu queria querer escalar o Kilimanjaro!
– Interlocutor: Você quer escalar o Kilimanjaro?
– Ana: Não, eu queria querer!
Escalar o Kilimanjaro é algo que representa a antítese das minhas habilidades e gostos. Então por que eu queria querer? Querer é diferente de querer querer e esta segunda representa nada que não uma briga com nós mesmos e com quem somos.
Mas quem somos nós? Esse é o X da questão. Acho que às vezes é importante parar um pouco e meditar um pouco para encontrar nossa essência – aquela que independe de como os outros nos enxergam. Nós nos perdemos num mar de expectativas alheias. Às vezes você precisa se afastar de tudo e todos para descobrir isso. Logo após o internato rural vim para a Alemanha fazer meu internato em pediatria. Um belo dia experimentei a sensação de que se ninguém me conhece e ninguém espera nada de mim, eu posso ser o que eu genuinamente quiser. Não confundir com what happens in Vegas, stays in Vegas, mas digo pelo lado de auto-conhecimento mesmo. Lembro de admirar que me abri de certa forma que em uma semana eu tinha um compromisso social por dia, com pessoas diferentes. Eu ia com fulana numa festinha de faculdade no centro onde não tinha um sequer ser que conhecia. Lá eu podia ser a Ana que é conversadeira com desconhecidos. Eu ia com ciclana na feira de vinho e lá eu podia ser a Ana que tomava vinho se desse na telha (até lá eu nem bebia nada). O interessante dessa experiência é que, apesar de eu estar vivendo coisas totalmente diferentes do que costumava viver, eu não estava sendo quem eu não era. Eu apenas estava sendo como eu realmente queria ser naquele momento. O ideal seria se conseguíssemos fazer isso sem precisar cruzar o Atlântico ou nos afastar das pessoas.
Não, meu marido nem está na foto acima,rs
Eu resolvi escrever sobre isso porque há um tempo me deparei com uma situação que “não tem nada a ver” comigo. Mas quando fui refletir, vi que não tem nada a ver com o que quem me conhece espera de mim. E ela combinou justamente com uma mensagem com a qual me deparei há uns dias:
“Eu já sei como é a sensação de desistir. Quero ver o que acontece se eu não desistir”.
Eu mudaria a mensagem para “eu já sei como seria se eu agisse como os outros esperam. Quero ver o que acontece se eu agir como eu realmente quero“.
Então a reflexão que eu queria propor é que nos policiemos em dois aspectos:
1) observar se agimos da forma como genuinamente somos e queremos ser e não para preencher um modelo do que esperam de nós. Isso tudo, claro, respeitando os preceitos da boa convivência e vida em sociedade.
2) que não sejamos – até mesmo para quem amamos – como os ralos de piscina. Que deixemos as pessoas serem livres. Que não joguemos ironias nem piadinhas quando alguém diz que quer fazer algo novo apenas porque não é o que você espera ou o que você faria. Que não cortemos as asas dos pássaros, que não prendamos numa gaiola quem dizemos amar.
Beijos!